HOMENAGEM FEITA EM 2008 AM RUA LEIDE das NEVES. MANAUS AM

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20 anos depois procurar meus direito tomados!

terça-feira, 31 de maio de 2011

Relato do passado triste.

26/04/2011 - 05h38
Vítima do césio-137 lembra depressão e preconceito após acidente
Júlia Dias Carneiro
Da BBC Brasil
No Rio de Janeiro

Comentário [1]

* Odesson e a neta Joice; ele tinha 32 anos quando foi gravemente contaminado pelo césio-137 em Goiânia, no pior acidente radiológico do Brasil

Odesson e a neta Joice; ele tinha 32 anos quando foi gravemente contaminado pelo césio-137 em Goiânia, no pior acidente radiológico do Brasil

Odesson Alves Ferreira tinha 32 anos quando foi gravemente contaminado pelo césio-137 em Goiânia, no pior acidente radiológico do Brasil. Mais de vinte anos depois, em entrevista à BBC Brasil, ele lembra os momentos de depressão e discriminação pelos quais passou desde então.

"Eu me contaminei e acabei virando uma fonte radioativa. As pessoas que passaram por mim foram irradiadas por mim, inclusive a minha família", diz Ferreira. "Parecia que éramos pessoas de outro mundo. Aquilo me doeu muito."

Hoje com 56 anos, pai de quatro filhos (a mais nova tinha seis meses na época do acidente), Ferreira é presidente da Associação de Vítimas do Césio-137 (AVCésio), formada para defender os direitos das vítimas da contaminação em Goiânia.

A família dele foi uma das mais atingidas. Foi seu irmão, Devair, quem comprou o velho aparelho de radioterapia que originou o acidente e começou a exibir o césio-137 que encontrou no instrumento, encantado com o brilho que aparecia no escuro.

Após o acidente na usina nuclear de Fukushima, precipitado pelo tsunami no Japão, Ferreira diz estar revivendo o sofrimento vivido a partir de 13 de setembro de 1987.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista à BBC Brasil.

BBC Brasil - O senhor é irmão do Devair, que comprou o material para o ferro-velho. Como o acidente afetou a sua família?
Odesson Alves Ferreira - A minha família foi a mais atingida. Mais de 40 parentes foram atingidos. O meu contato com o material foi na casa do Devair. Ele me mostrou o césio dizendo que era muito bonito, e que eu devia levar um pedaço para fazer um anel para a minha mulher. Graças a Deus eu vi o material na luz do dia e não tinha nenhuma beleza que chamasse muito a atenção. Passei na mão e aquilo se desmanchou, e falei para ele que aquilo não prestava para nada.

Foi assim que eu me contaminei e acabei virando uma fonte radioativa. As pessoas que passaram por mim foram irradiadas por mim, inclusive a minha família. Eu ainda trabalhei oito dias como motorista de ônibus sem saber que estava contaminado. Carregava em média mil pessoas por dia. Só no dia 30 (de setembro) foi que eu soube. No dia 1º, dei entrada no hospital para a quarentena e fiquei até 23 de dezembro.

BBC Brasil - Como foi a quarentena?
Ferreira - Éramos 22 pessoas de quarentena. A gente não podia sair nem ter contato com pessoas fora do nosso grupo, só os médicos. Outra parte da família ficou num isolamento mais brando.

Nos primeiros 17 dias, não tinha sequer limpeza no nosso pavilhão. O espaço só recebeu algum tipo de higiene no dia em que (o então presidente da República) José Sarney foi fazer uma visita. Eles entraram no pavilhão com o corpo coberto por uma parafernália de segurança, e nós ali no cantinho, sentados no colchão. Parecia que éramos pessoas de outro mundo. Aquilo me doeu muito.

BBC Brasil - Quando você saiu do hospital, a situação melhorou?
Ferreira - Aí começou a situação de preconceito e discriminação. As crianças queriam sair do colégio, porque não aguentavam mais problemas com coleguinhas. Na empresa de ônibus, os colegas que até pouco antes saíam para tomar cerveja comigo correram de mim.

A minha mulher começou a ter problemas e distúrbios nervosos, começaram a aparecer caroços no rosto e na cabeça dela. As pessoas corriam dela na rua, ela entrava no ônibus e saíam pela outra porta. Vizinhos quiseram apedrejar a nossa casa. Quando nos mudamos para a casa onde vivemos até hoje, correu um abaixo-assinado na vizinhança para tentar impedir.

Meu irmão Devair chegou a ser ameaçado de morte por um médico. Ele falou para ele: "vou te matar, porque eu estou com câncer e você é o culpado". São coisas que a gente viveu que não gostaria que nenhuma outra pessoa passasse.

BBC Brasil - E o que aconteceu com a casa onde vocês moravam antes?
Ferreira - Parte virou rejeito radioativo. A casa do Devair foi implodida, ele não conseguiu tirar uma camisa lá de dentro. A gente perdeu objetos valiosos, como fotos das crianças, do meu filho peladinho ali, a gravata do casamento. O carro foi contaminado também. Minha mulher e meus filhos estavam num albergue porque a gente não tinha casa, móveis, nada. Foram mais de três meses morando ali numa situação de crise.

BBC Brasil - Depois da quarentena, quanto tempo levou até que você estivesse livre da radiação?
Ferreira - A gente ainda ficou dois anos e meio fazendo medição num laboratório que a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) montou na Rua 57. Depois disso, disseram que a gente estava descontaminado. Mas a gente ficava cheio de dúvidas. Havia vários descompassos nas medições que faziam, eles também não pareciam saber bem o que estavam fazendo. Tanto é verdade que alguns técnicos se contaminaram.

BBC Brasil - E os seus irmãos?
Ferreira - O Devair morreu sete anos depois do acidente, em 1994. O laudo médico disse que foi cirrose hepática, mas o laudo cadavérico constatou que ele tinha câncer em três órgãos. O Ivo (irmão de Devair e Odesson) morreu em 2003, de enfisema pulmonar. O que aconteceu foi que os vícios pegaram muita gente. O Devair foi com a bebida. Com o Ivo foi o cigarro, ele chegou a fumar seis maços por dia.

Eu consegui manter os pés mais no chão, mas passei por períodos de depressão também. Tem horas que eu penso que vou recair, mas aí dou uma olhada para o lado e vejo que tem alguém precisando de mim. Mas não é fácil, até porque é muito ruim quando você luta, luta por determinado objetivo e percebe que ele está mais longe.

BBC Brasil - Quais são as principais reivindicações da associação hoje?
Ferreira - A luta da associação é fazer com que o governo atenda assistencialmente todas as pessoas que foram comprovadamente vítimas do acidente. Temos 1.194 associados, mas apenas 468 recebem pensão, e apenas 164 destes recebem assistência médica.

Quando o governo concede uma pensão financeira por entender que alguém foi vítima do acidente, então ela merece receber atendimento médico integral, inclusive psicológico. Hoje existem em torno de 960 processos na Justiça de pessoas que estão esperando assistência.

BBC Brasil - Que tipo de problemas de saúde os associados enfrentam?
Ferreira - Geralmente são doenças comuns, mas mais frequentes e precoces. Por exemplo, osteoporose e hipertensão são comuns, mas são comuns em jovens de 18, 20 anos? Outra doença constante é a úlcera. Quase todas as pessoas têm. E 100% das pessoas têm gastrite.

Eu gostaria que fossem feitas pesquisas sérias com essas pessoas. Infelizmente o que temos aqui são 24 anos jogados fora. O governo e os cientistas não se apropriaram do que aconteceu.

O governo nega o nexo causal das doenças, diz que as doenças não têm a ver com o acidente, mas não provam nada. Até porque, a partir do momento em que apontarem que os problemas de saúde são realmente sequelas do acidente, a Justiça vai exigir um pouco mais de guarida. Isso eles não querem.

BBC Brasil - O que o senhor sentiu quando soube do recente acidente na usina nuclear de Fukushima, após o tsunami no Japão?
Ferreira - A gente revive tudo aquilo que passou, volta tudo na lembrança. O que mais dói é que as coisas estão sendo negadas lá, da mesma maneira como aconteceu aqui. O governo fala para as pessoas ficarem tranquilas. Mas a gente aprendeu que o efeito da radiação é cumulativo. Cada gole que o cidadão toma vai ficando no organismo. Infelizmente, só daqui a alguns anos que as pessoas vão sentir.

Dá um desespero, porque tudo que a gente viveu aqui foi com 19 gramas de césio. O acidente foi grave e foram apenas 19 gramas.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

reencontro parte1

Materia d egoiania!

Planeta Terra, cidade Goiânia
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Mês passado, cumprindo pauta pra edição brasileira da revista Vice, fui atrás de algumas das vítimas diretas do acidente com o Césio 137 (lembra disso?), pra trocar uma ideia e descobrir qual a situação atual dessa turma que enfrentou uma barra tão pesada em 1987. O magazine já saiu da prensa e está nas ruas, mas como nem todo mundo mora em São Paulo, Rio, ou qualquer outro lugar que a distribuição da revista alcance de fato, copiei/colei a reportagem (que também está disponível no site da revista) aí embaixo.


Armazenamento do lixo radioativo.
Foto: Autor Desconhecido.




UMA HISTÓRIA QUE
NÃO BRILHA NO ESCURO



Planeta, Terra. Cidade, Goiânia. Vinte e três anos depois do maior acidente radioativo do mundo fora de usinas nucleares, as vítimas do Césio 137 ainda lamentam os seus mortos e reclamam a atenção do Estado.


No dia 13 de setembro de 1987, catadores de sucata invadiram o prédio abandonado do extinto Instituto Goiano de Radioterapia e levaram de lá um aparelho radiológico que venderam a Devair Ferreira, dono de um ferro-velho nas imediações. Devair desmontou a peça a marretadas para retirar e vender as partes de chumbo. Ficou tão encantado com o brilho azul do misterioso pó branco/azulado que descobrira em seu interior que resolveu mostrar seu “achado” aos vizinhos e familiares - alguns chegaram a levar amostras para suas casas. O que não sabiam era que estavam espalhando vários focos de contaminação radioativa, pois o tal pó era cloreto de Césio 137—um isótopo radioativo produzido artificialmente pela fissão do urânio ou plutônio.

Logo depois de as autoridades tomarem conhecimento da gravidade da situação, cerca de uma semana após a exposição da cápsula de Césio ao ambiente, enviaram um ônibus cheio de moradores da região contaminada para o antigo Estádio Olímpico, que serviu de área de quarentena até que se decidisse, dali a alguns dias, pela remoção das vítimas para um prédio vazio no Jardim Europa, região Sudoeste de Goiânia, onde ficariam em completo isolamento pelos próximos quatro ou cinco meses, sem direito a informação — rádio e televisão eram expressamente proibidos.

Hoje, 23 anos depois, o número de mortes ligadas diretamente ao incidente é estimado na casa das dezenas, ainda que as fontes oficiais só confirmem alguns poucos óbitos. E quanto aos sobreviventes, divididos em grupos segundo o grau de contaminação, a polêmica é ainda maior. A cápsula radioativa já havia provocado um turbilhão de consequências-que-geram-consequências ainda em misteriosa atividade.

Recentemente, toquei a campainha de uma casa simples na periferia de Aparecida de Goiânia, cidade já quase engolida pela capital, pouco antes das 10 horas da manhã de um sábado de sol. Dona Lourdes das Neves, 58 anos, mãe de Leide das Neve ( a menina que, com seis anos em 1987, comeu um pão contaminado e foi uma das primeiras vítimas fatais da cápsula de Césio 137), me atendeu com uma simpatia inesperada.

Mas mais de duas décadas depois, pessoas como Dona Lourdes não parecem guardar esperanças de que as devidas culpas, que de tão divididas acabaram diluídas, sejam de fato assumidas ou apontadas pelas autoridades, e têm um discurso pronto, ensaiado ao longo dos anos em tantas entrevistas concedidas, para desfiar uma história de horror tão mal contada quanto “bem” escondida.

Odesson Alves Ferreira, 55 anos, também é uma dessas pessoas. É o presidente da Associação das Vítimas do Césio 137, órgão cujas iniciais formam uma espécie torta de acrônimo, carregado de ironia auto-evidente: AVCésio. E se você acha que Goiânia, em 1987, não chegou a sofrer nada tão grave quanto um, por assim dizer, acidente vascular cerebral, o golpe que a cidade e a vida que nela habitava sofreu — incluindo a minha inocente versão de sete anos de idade — foi tão violento e enigmático que a comparação em tom de humor-negro não é descabida, ainda mais levando-se em conta que, além de tudo, parte significativa do ocorrido se perdeu para todo o sempre.



Odesson e suas sequelas.
Foto: Aluene Silva


Tanto Odesson quanto Dona Lourdes pertencem ao Grupo 1, que reúne as vítimas que sofreram contaminação direta. Sem monitoramento médico específico há cerca de 15 anos, doenças como atalectasia, bronquite, amigdalite, prostatite, esteatose hepática, otite, hipertensão, gastrite e artrite se acumulam em seus prontuários médicos, às vezes simultaneamente, sem que estudos sobre os possíveis nexos causais entre a radiação recebida e o aparecimento, precoce ou não, desses e de outros males, sejam realizados.

De volta à casa simples de Dona Lourdes, depois de ensaiar um sorriso tímido para me confirmar uma esperança anêmica de que finalmente as coisas melhorem, enxergo, por um milésimo de segundo, certa surpresa cansada em seu olhar ao ouvir meu pedido por um copo d’água (depois de anos enfrentando olhares mais que desconfiados, as vítimas, em geral, praticam a arte da cautela extrema em qualquer relação, por mais efêmera que seja). Depois de me servir a água, dona Lourdes seguiu narrando o isolamento que começou na semana seguinte ao acidente e que, guardadas as proporções do contexto que o tempo se encarregou de atenuar (mas não apagar), se perpetua até hoje.

Apesar de se queixar de que suas lembranças do período são embaralhadas, o que ela atribui ao fato de ter sido “mantida constantemente dopada”, dona Lourdes garante que seu único contato com o mundo exterior durante os meses de isolamento era com jornalistas, mas que, ainda segundo palavras dela, todos eles já vinham preparados pelas autoridades sobre o que podiam, ou não, dizer às vítimas sobre o que havia acontecido lá fora.

E me confessa, ainda com um sorriso contido, que sua situação emocional estava tão dilacerada pelo isolamento, as mortes da cunhada e da filha, a incerteza do futuro e a angústia da desinformação, que hoje sente saudades dos repórteres da televisão que vieram cobrir o caso do Césio, na época: “Eu sou muito de acompanhar jornal, sabe, e hoje fico vendo esses repórteres que vieram pra cá na época, e me dá uma saudade... A gente tava tão carente, que se apegou demais a eles, que eram muito carinhosos, atenciosos mesmo com a gente”.

Já Odesson é menos sentimental e mais pragmático, e ainda que não critique abertamente o trabalho da imprensa na cobertura do caso ao longo dos anos, se ressente do fato de que, segundo ele, a versão oficial prevalece na maioria das matérias sobre o assunto, o que ameniza ou mesmo anula as reivindicações das vítimas. Vítimas que, garante, vêm perdendo assistência desde a extinção da Fundação Leide das Neves, em 1999, operada pelo governo Marconi Perillo (novamente líder das pesquisas para o cargo nas eleições 2010). Por causa da burocracia enfrentada pela “substituta” Superintendência Leide das Neves, a Suleide, que por ser apenas uma unidade administrativa da Secretaria Estadual de Saúde não tem poder de decisão (ao contrário da Fundação Leide das Neves, que gozava de ampla autonomia), uma série de distorções assustadoras se abateu sobre os beneficiários, como interrupções de até um ano e redução pela metade no fornecimento de medicamentos. À época, o então governador justificou a manobra da extinção da Funleide e da criação da Suleide apenas como um dos efeitos de uma reforma administrativa.

Jorge de Moraes atualmente mora no estado do Amazonas, mas em 1987 dirigiu um dos caminhões que fizeram a remoção e o transporte das seis toneladas de lixo radioativo (as casas contaminadas foram demolidas literalmente com tudo dentro, móveis, utensílios, roupas etc.) para o depósito em Abadia de Goiás. Por coincidência ou não, já havia sido motorista do Instituto de Energia Nuclear na Ilha do Fundão—RJ, onde diz ter feito um ligeiro curso de proteção em caso de acidente radiológico, mas nada além de noções dos procedimentos de evacuação e primeiros socorros. Mesmo à distância, quando questionado sobre o real alcance da contaminação em 1987, afina o discurso com Odesson e dona Lourdes. Acredita seriamente que a irradiação alcançou uma quantidade realmente muito maior de pessoas do que rezam os números oficiais. E se impressiona com o fato de que a maioria dessas pessoas simplesmente não tenha nenhuma noção, até hoje, de que teve contato próximo, por exemplo, com a própria pedra de Césio — e que assim tenham, além de se contaminado, irradiado também seus filhos, esposas e maridos.

Dona Lourdes das Neves já havia me confirmado que, além dos vizinhos contaminados que viajaram para Anápolis (cidade distante 50 km da capital) antes de as autoridades começarem a agir, sua cu-nhada, Maria Gabriela, esposa de Devair Ferreira, havia circulado de ônibus carregando a bomba de Césio 137 e expondo não só aquelas pessoas que se encontravam dentro do veículo no percurso de sua viagem, mas também muitas outras que tomaram, nas viagens e dias seguintes, aquele ônibus incógnita e diretamente irradiado. Sem levar em conta o dinheiro manipulado pelas vítimas ali dentro, que também seguiu circulando livremente.

O próprio Odesson, então motorista de ônibus da Rápido Araguaia, até hoje uma das principais empresas de transporte urbano coletivo de Goiânia, trabalhou normalmente durante uma semana inteira depois de ter esfregado o pó de Césio na palma de uma das mãos, para testar sua consistência—como consequência, perdeu dois dedos e convive até hoje com uma “bola” na palma da mão esquerda. A remoção do lixo radioativo, da qual Jorge de Moraes foi parte integrante, também foi feita de maneira tradicional, sem roupa antirradiação ou maiores cuidados. Ou seja, a coisa já havia fugido de qualquer controle muito antes das autoridades tomarem conhecimento do acontecido, processarem a história e, tateando no escuro, tomarem as primeiras providências.




Foto esquerda: Contaminação/Radioatividade com Césio 137 em Goiânia.
Foto produzida em 26/10/87 por Wilson Pedrosa/Cpdoc JB. Foto direita: O
Instituto de Energia Nuclear da Ilha do Fundão recebendo e processando os
rejeitos nucleares que chegam do Hospital Marcílio Dias, onde estavam os
goianos contaminados pela radioatividade do Césio 137.
06/10/87 por Mauro Nascimento/Cpdoc JB.



O falecido jornalista Weber Souza dirigia, na época, um dos programas de maior audiência da TV local, o popularesco Goiânia Urgente, da extinta TV Goiás—então afiliada ao SBT, e foi o primeiro não-membro do governo a perceber alguma coisa errada no ar, depois de uma infrutífera tentativa de matéria sobre intoxicação alimentar no Hospital de Doenças Tropicais. Por causa da falta de intoxicados, a matéria ganhou novo enfoque e se adaptou a uma pauta misteriosa, sugerida pelos enfermeiros: intoxicação atômica. De volta ao estúdio, Weber assistiu, com fones de ouvido, às gravações da matéria e, segundos antes da câmera parar de gravar, teria ouvido alguém sussurrar, lá no fundo: “O Faleiros [então secretário da Saúde] vai ferrar a gente”. Weber relata, além desse, vários outros episódios sobre o acidente em seu livro Eu Também Sou Vítima—A Verdadeira História Sobre o Acidente com o Césio 137 em Goiânia, cujo título não faz menção à própria contaminação, incrivelmente negada pelos testes, mas, sim, ao curioso episódio em que, durante a repercussão do caso na imprensa, foi convidado para o programa de Hebe Camargo e aproveitou a janela em rede nacional para convocar a presença do então presidente José Sarney em Goiânia, solicitando também que o chefe do governo levasse sua esposa Marly Sarney, antes de seguir viagem para a Colômbia (destino que precedia a visita federal à cidade atingida pelo Césio no roteiro de viagem presidencial). O presidente Sarney veio, mas a audácia do jornalista lhe custou o emprego (há quem diga que o Planalto reclamou diretamente com Sílvio Santos, que deu a ordem de “cortar a cabeça” de Weber). Porém, esse foi o estalo para a confecção do livro e para a catalogação ostensiva de um vasto acervo sobre o acidente radiológico, doado à AVCésio pouco antes de sua morte, em 2007. No livro, Weber relata ainda uma história que mais parece roteiro de filme do Buñuel.

Durante o processo de descontaminação da Rua 57, onde tudo estava demarcado e fechado pela polícia, com soldados de prontidão e gente lavando o Césio das calçadas, Weber conta que viu ao lado a movimentação de um pessoal em “roupas de domingo”. Curioso, foi lá e perguntou o que estava acontecendo, ao que responderam que estavam lá para se casar. “O noivo me disse: ‘Em nome de Deus, nós vamos nos casar’. Eu expliquei que eles estavam a um metro do local do acidente radiológico, mas ele me disse: ‘Deus vai nos proteger. Não vai acontecer nada com a gente’. Percebendo a cena inusitada, decidi assistir e filmar o casamento. Eu estava de macacão, luva e máscara. Me senti um Federico Fellini. Estava filmando de joelhos para não assustar as pessoas, principalmente as crianças. A máscara preta, que simulava uma boca de cachorro, era assustadora. De repente, no final do corredor, vejo um latão, que estava na porta da igreja Assembleia de Deus. Jorge Pontual, então editor do Globo Repórter, da TV Globo, viu a gravação e ficou impressionado. A cena era mesmo meio surrealista, mas não para os noivos e seus convidados, que estavam alheios ao frenesi externo”.

Isso sem falar na história de tons bizarros que reza que soldados da polícia montada foram escalados sem seus cavalos para a vigilância do lixo radioativo, numa inversão alucinada que supostamente pretendia preservar os animais da irradiação. Ou ainda o sumiço dos cérebros das quatro primeiras vítimas fatais que, segundo Weber diz ter sido informado, haviam desaparecido do Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. E, para dar cores ainda mais apocalípticas ao cenário, houve até quem pregasse que o acidente havia sido profetizado por Nostradamus: “Centúrias 5, Quadra 57!”.

Mas como qualquer outra catástrofe de grande apelo (dramático, jornalístico...), o acidente com o Césio ecoou também no cenário cultural da cidade, e a catástrofe humana de suas vítimas foi traduzida nas mais variadas expressões artísticas. Nas artes plásticas, a obra mais emblemática talvez seja a série de esculturas batizada de “Vestígios—Série Césio” (Camas—objetos escultóricos), de Siron Franco. Na literatura, um bom exemplo é o livro do jornalista Fernando Pinto, A Menina que Comeu Césio, que apesar do tom de denúncia não deixa de se utilizar de recursos literários. No cinema, o filme do diretor Roberto Pires, Césio 137—O Pesadelo de Goiânia, com os globais Joana Fomm e Stepan Nercessian. Na música, talvez as manifestações mais contundentes tenham vindo de duas bandas de rock. Ainda sob a ameaça de consequências desconhecidas, no início dos anos 90, o trio punk HC 137—Horrores do Césio 137—abusou do tema em seus dois LPs (Nas Coxas, 1991, e Made in GO, 1992). E, no fim da década, uma das principais bandas do período, a Punch, batizou seu primeiro disco de Cesium 137, também enxertando o assunto em toda a obra.

Atualmente, Dona Lourdes, mesmo que não aparente amargura, não tem lá muitas esperanças de que a coisa se resolva de fato, mas ainda reclama uma assistência médica condizente com sua situação, e ressente-se profundamente da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear): “Eu acho que eles nem lembram de mim mais, nem sabem que eu existo. O monitoramento já parou há uns 15 anos. Hoje a preocupação deles é com o centro lá de Abadia [depósito do lixo radioativo]. Um dia eu fui lá e fiquei morrendo de vergonha, me senti um lixo. Pensei, poxa, o lixo radioativo são as vítimas, são os seres humanos que estão tentando sobreviver. Lá é um luxo, e a gente assim, sem assistência. Antes de chegar lá eu tava com sede, mas aí, quando eu entrei e vi, perdi a sede na hora. Me ofereceram água, café, suco e eu não aceitei nada. Deu um nó aqui assim”.


Dona Lourdes das Neves
Foto: Aluene Silva



Odesson, Jorge e Sueli Lina Moraes Silva—secretária da AVCésio—engrossam sua reclamação sobre a falta de interesse da comunidade científica sobre o caso, já que não há sequer acompanhamento médico especializado para estudos comparativos sobre a evolução do contaminado por radiação ao longo dos anos: “Eu fico pensando, a gente está aí à disposição de quem quiser estudar, aprender com a gente. Tamo quase se jogando pros médicos, mas não têm interesse, tem uns que parecem que têm é medo”.

Mas depois de tantos anos de indiferença, pela primeira vez nessa história o Poder Judiciário de Goiás tomou a iniciativa e convocou as vítimas para uma audiência pública no último dia 17 de agosto, com a intenção de reunir todos os processos—já que o Tribunal de Justiça não os cataloga por assunto—, inclusive os que ainda estão na esfera administrativa, e dar uma demanda natural a eles. E, para isso, o presidente do TJ, Paulo Teles, solicitou, tanto pelas vias oficiais quanto pela imprensa local, a colaboração da cúpula da PM e do governo do Estado: “Algumas pendências estão nas informações da Polícia Militar. O comandante por certo que colocará à disposição do Judiciário esses instrumentos para que as ações possam ter um desenvolvimento maior”.

Questionados por esta reportagem a respeito da audiência que reuniu cerca de 400 pessoas, tanto dona Lourdes e Odesson quanto dona Sueli—também vizinha de um dos focos de contaminação—, Danúbio Cardoso—advogado voluntário da AVCésio que defende tese de mestrado na Universidade de Lisboa sobre o assunto—e o ex-motorista Jorge de Moraes manifestaram algum grau de otimismo moderado frente à ação do Tribunal de Justiça, ainda que Odesson seja o mais reticente em comemorar: “A princípio diria que foi um bom evento sim, talvez pelo fato de ser inédito e ter partido do próprio presidente, porém ainda tenho dúvidas do sucesso porque a maioria dos processos está no âmbito administrativo, e também tem o agravante de que muitos deles ninguém sabe onde estão. (...) Houve muitos agravos e os vitimados decepcionados não sabem onde ‘enfiaram’ os recibos do protocolo”.

E quando perguntado sobre se a experiência de 87 serviu para nos proteger de incidentes semelhantes no futuro, Odesson vai além, afirmando que um novo acidente teria consequências iguais ou piores, já que a maioria dos médicos e peritos que adquiriu experiência na época está ou morta ou aposentada, e que muito pouco conhecimento científico sobre o assunto foi produzido. Alerta ainda para o desaparecimento de outra cápsula de Césio, que teria ocorrido numa Universidade de Belo Horizonte há poucos meses: “Imagina isso nas mãos de malfeitores?”.

Concretamente, o fato é que, das 1.600 vítimas que, segundo a AVCésio (respaldada pelo Ministério Público), teriam direito à assistência médica, pensão e/ou indenização, apenas cerca de 470 recebem algum ou alguns destes benefícios. A pensão vitalícia estadual, de R$ 510,00 a R$ 822,00, e a federal, de R$ 510,00, só é acumulada por cerca de 250 destas 470 pessoas (numa conta que vai de R$ 1.020,00 a R$ 1.332,00), e as únicas vítimas que recebem valores maiores que a somatória do teto das duas pensões são as que foram consideradas incapazes para o trabalho.

Jornal do Brasil - Cultura - Exposição sobre maior acidente nuclear do Brasil abre neste domingo

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